sábado, 30 de abril de 2016

Papa Francisco, Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família, 19 de março de 2016


Uma leitura breve

Do muito que a presente exortação refere, sublinho apenas quatro pontos: 1) a análise da situação; 2) a pastoral do vínculo; 3) o sujeito principal da pastoral familiar; 4) a lógica da integração. Vários outros merecem ser ponderados, como o que se refere à vida e à fecundidade, o direito inquestionável dos pais no respeitante à educação dos filhos, o diálogo e acompanhamento intergeracional, a pedagogia sacramental do matrimónio, etc.  

«O caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo atual, alargar a nossa perspetiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimónio e da família» (AL, 2). Com estas três notas, o Papa Francisco carateriza a reflexão eclesial entretanto feita: analisar a situação, alargar a perspetiva e reavivar a consciência. E assim realmente aconteceu, pois foram muitos os contributos de testemunho e análise para melhor compreendermos o que se passa, várias as perspetivas geográficas e culturais que se interligaram e reforçada saiu a consciência eclesial sobre a importância decisiva da nossa primeira e indispensável agregação social e eclesial – precisamente a família.
Este mesmo conjunto de perspetivas e análises requereu, de uma para outra assembleia sinodal, o maior aprofundamento das questões e das soluções, como é próprio da tradição viva em que a Igreja lê evangelicamente os sinais dos tempos e lhes procura corresponder, tão idêntica como atualmente. Identidade e atualidade que, conjugadas, evitarão os dois escolhos da descaraterização ou do passadismo (cf. Ibidem).
A leitura dos sinais só biblicamente pode ser feita. Os relatórios das duas assembleias e a própria exortação apostólica dão-nos conta disto mesmo, sobretudo ao sublinhar o caráter existencial da revelação, que inclui a família, o seu valor, o seu drama e redenção. Na verdade, «a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus “enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não houver mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor” (Ap 21, 4)» (AL, 22). As meditações bíblicas presentes na exortação apostólica constituem um notável contributo para a catequese e a pastoral familiar, como havemos de aproveitar.

«Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade» (AL, 52). Creio ser esta a grande preocupação do Papa Francisco e mesmo a razão principal que o levou a convocar as assembleias sinodais que estão na base da presente exortação apostólica. Está convicto de que «nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade» (Ibidem).
Encontra no próprio amor humano, quando autêntico, o sinal e o apelo da respetiva perenidade, como escreve mais adiante: «Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projeta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; […] os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo» (AL, 123).
Daqui que a preparação e o acompanhamento do matrimónio devem revelar a sua coincidência com o que há de mais profundo em quem ama e vai amando, sem ilusão nem desistência: «Tanto a preparação próxima como o acompanhamento mais prolongado devem procurar que os noivos não considerem o matrimónio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis» (AL, 211).
Nesta ordem de ideias, o Papa Francisco escreve mesmo que o “vínculo” carateriza tanto a pastoral como a espiritualidade do matrimónio: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (AL, 211). E no final da exortação: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (AL, 315).

«A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as Igrejas domésticas. Assim, “em virtude do sacramento do Matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja” (Relatio Finalis 2015, 52)» (AL, 87). Esta afirmação deverá obter grande consequência na vida das nossas comunidades, paroquiais e outras. Significa, por exemplo, que antes de contar os fiéis presentes e ausentes, habituais ou ocasionais, devemos perguntar-nos pelas realidades familiares que constituem a rede e o suporte da nossa vida comunitária. Se a Igreja se alarga na familiaridade geral de todos os filhos de Deus, a vida familiar oferece à comunidade cristã a solidariedade básica da casa de cada um. Daqui a conclusão e a mútua responsabilidade: «“ a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã”» (Ibidem).
A experiência atual de milhares de famílias em missão, demonstrando na prática a potencialidade do sacramento que as origina, é deveras convincente e criativa, em termos de evangelização e nova evangelização, longe ou perto, indo a outro continente ou a outro andar do mesmo prédio em que habitam: «Com o testemunho e, também, com a palavra, as famílias falam de Jesus aos outros, transmitem a fé, despertam o desejo de Deus e mostram a beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público, colorindo-o de fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis, fé luminosa, esperança ativa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade» (AL, 184).
E tão relevante se torna este facto, que as famílias tomam a primazia pastoral no que lhes é próprio: «Os Padres sinodais insistiram no facto de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo “o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas” (Relatio Synodi 2014, 30)» (AL, 200).
No Sínodo foi também realçada a importância catequética da família, dos pais em relação aos filhos e não só: «… a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. […] Por isso, “tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como sujeitos ativos da catequese […]. De grande ajuda é a catequese familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria família” (Relatio Finalis 2015, 89)» (AL, 287).

«Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo” (Relatio Finalis 2015, 84)» (AL, 299). Como é sabido, este ponto teve referência prioritária nos media, como já a tivera antes e durante as assembleias sinodais.
Se tivermos bem presentes duas exortações apostólicas pós-sinodais anteriores – Familiaris Consortio, nº 84, de João Paulo II, e Sacramentum Caritatis, nº 29, de Bento XVI – nem esta nem outras afirmações decorrentes nos trazem novidade substancial: discernimento das situações e das responsabilidades, distinção entre objetivo e subjetivo, gradualidade, participação na vida comunitária, de tudo isto nos dão conta os textos dos Papas Wojtyla e Ratzinger. Entretanto, a integração de todos e tanto quanto possa ser é uma das insistências maiores do atual pontificado, em grande correspondência à misericórdia divina e aos dramas duma sociedade tão desintegrada como a atual. Daqui a insistência do Papa Francisco, em relação a estas situações: «A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral […]. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais as diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas” (Relatio Finalis 2015, 84)» (AL, 299). Reparemos que, neste elenco das exclusões a rever, não se mencionam as sacramentais.
Na verdade, o Papa não dá novas normas, antes reforça as exigências de discernimento já indicadas pelos seus antecessores: «… é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento e um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos” (Relatio Finalis 2015, 84), as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o dever de “acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (Ibidem, 85)» (AL, 300).
Evitando qualquer arbitrariedade no acompanhamento pastoral dos casos concretos, em que hão de prevalecer «a humildade, a privacidade, o amor à Igreja e à sua doutrina, a busca sincera da vontade de Deus». Na verdade, «estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente “exceções”, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores» (AL, 300).
O Papa Francisco retoma a já conhecida distinção entre objetividade e subjetividade, nos seguintes termos: «Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas [que] subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja» (AL, 305). E especifica na nota 351: «Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso “aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” (Evangelii gaudium, 44). E de igual modo assinalo que a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (Ibidem, 47)».  
Para compreendermos melhor o que possa acontecer no âmbito da Penitência e da Eucaristia – certamente mais vasto do que a absolvição e a comunhão propriamente ditas – atendamos, para já, ao recente conselho do Papa: «Tenho de dizer aos confessores: falem, ouçam pacientemente e acima de tudo digam às pessoas que Deus quer o seu bem. E se o confessor não pode absolver, que explique porquê, mas que não deixe de dar uma bênção, mesmo sem absolvição sacramental. O amor de Deus também existe para quem não está disponível para receber o sacramento» (Francisco, O nome de Deus é Misericórdia, Lisboa, Planeta, 2015, p. 33). Sem esquecer a possibilidade já prevista de acesso aos sacramentos por parte de recasados plenamente continentes, ou a crescente verificação da validade ou nulidade dos matrimónios, cumprindo as determinações do Código de Direito Canónico e do Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, de 15 de agosto de 2015.  

Concluindo: A intenção prevalecente do Papa Francisco é propor o matrimónio cristão, realmente possível com a graça divina: «Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza: “É preciso encorajar os jovens batizados para não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do Matrimónio oferece aos seus projetos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente da vida da Igreja” (Relatio Synodi 2014, 26). […] Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falhanços é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas» (AL, 307).

+ Manuel Clemente

quinta-feira, 21 de abril de 2016

22/04 - 21.30 - Missa de Ação de Graças


Sexta feira 22/04 - 21.30
 
Missa de Ação de graças pêlos resultados obtidos com a recolha de bens alimentares promovidos pela Ajuda Fraterna da Paroquia com o objectivo de ajudas as famílias carências por si acompanha.
 
 




sábado, 9 de abril de 2016

Leia a síntese da Exortação "A alegria do amor"

2016-04-08 Rádio Vaticana


Cidade do Vaticano (RV) - Amoris laetitia” (AL - “A alegria do amor”), a Exortação apostólica pós-sinodal “sobre o amor na família”, datada não por acaso de 19 de março, Solenidade de S. José, recolhe os resultados de dois Sínodos sobre a família convocados pelo Papa Francisco em 2014 e 2015, cujas Relações conclusivas são abundantemente citadas, juntamente com documentos e ensinamentos dos seus Predecessores e as numerosas catequeses sobre a família do próprio Papa Francisco. Contudo, como já sucedeu noutros documentos magisteriais, o Papa recorre também a contributos de diversas Conferências episcopais de todo o mundo (Quênia, Austrália, Argentina...) e a citações de personalidades de relevo, como Martin Luther King ou Erich Fromm. Ressalta em particular uma citação do filme “A Festa de Babette”, que o Papa recorda para explicar o conceito de gratuitidade.

Premissa

A Exortação apostólica chama a atenção pela sua amplitude e articulação. Está dividida em nove capítulos e mais de 300 parágrafos. Tem início com sete parágrafos introdutórios que evidenciam a plena consciência da complexidade do tema, que requer ser aprofundado. Afirma-se que as intervenções dos Padres no Sínodo constituíram um «precioso poliedro» (AL 4) que deve ser preservado. Neste sentido, o Papa escreve que «nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais». Por conseguinte, para algumas questões «em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto,“as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”» (AL 3). Este princípio de inculturação revela-se como muito importante até no modo de articular e compreender os problemas, modo esse que, sem entrar nas questões dogmáticas bem definidas pelo Magistério da Igreja, não pode ser «globalizado».

Mas sobretudo o Papa afirma de imediato e com clareza que é necessário sair da estéril contraposição entre a ânsia de mudança e a aplicação pura e simples de normas abstratas. Escreve: «Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas» (AL 2).

Capítulo primeiro: “À luz da Palavra”

Enunciadas estas premissas, o Papa articula a sua reflexão a partir das Sagradas Escrituras no primeiro capítulo, que se desenvolve como uma meditação acerca do Salmo 128, característico da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia «aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares» (AL 8) e a partir deste dado pode meditar-se como a família não é um ideal abstrato, mas uma «tarefa “artesanal”» (AL 16) que se exprime com ternura (AL 28), mas que se viu confrontada desde o início também pelo pecado, quando a relação de amor se transformou em domínio (cf. AL 19). Então, a Palavra de Deus «não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho» (AL 22).

Capítulo segundo: “A realidade e os desafios das famílias”

Partindo do terreno bíblico, o Papa considera no segundo capítulo a situação atual das famílias, mantendo «os pés assentes na terra» (AL 6), bebendo com abundância das Relações conclusivas dos dois Sínodo se enfrentando numerosos desafios, desde o fenômeno migratório à negação ideológica da diferença de sexo («ideologia de gênero»); da cultura do provisório à mentalidade anti-natalidade e ao impacto das biotecnologias no campo da procriação; da falta de habitação e de trabalho à pornografia e ao abuso de menores; da atenção às pessoas com deficiência ao respeito pelos idosos; da desconstrução jurídica da família à violência para com as mulheres. O Papa insiste no carácter concreto, que é um elemento fundamental da Exortação. E é este carácter concreto e realista que estabelece uma diferença substancial entre «teorias» de interpretação da realidade e «ideologias».

Citando a Familiaris consortio, Francisco afirma que «é salutar prestar atenção à realidade concreta, porque “os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história” através dos quais “a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais profundado inexaurível mistério do matrimônio e da família”» (AL 31). Sem escutar a realidade não é possível compreender nem as exigências do presente nem os apelos do Espírito. O Papa nota que o individualismo exacerbado torna hoje difícil a doação a uma outra pessoa de uma maneira generosa (cf. AL 33). Eis um interessante retrato da situação: «Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais» (AL 34).

A humildade do realismo ajuda a não apresentar «um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são» (AL 36). O idealismo não permite considerar o matrimônio assim como é, ou seja, «um caminho dinâmico de crescimento e realização». Por isso, também não se pode julgar que se possa apoiar as famílias «com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça» (AL 37). Convidando a uma certa “autocrítica” de uma apresentação não adequada da realidade matrimonial e familiar, o Papa insiste na necessidade de dar espaço à formação da consciência dos fiéis: «Somos chamados aformar as consciências, não a pretender substituí-las» (AL37). Jesus propunha um ideal exigente, mas «não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera» (AL 38).

Capítulo terceiro: “O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”

O terceiro capítulo é dedicado a alguns elementos essenciais do ensinamento da Igreja acerca do matrimônio e da família. É importante a presença deste capítulo, porque ilustra de uma maneira sintética em 30 parágrafos a vocação à família de acordo com o Evangelho, assim como ela foi recebida pela Igreja ao longo do tempo, sobretudo quanto ao tema da indissolubilidade, da sacramentalidade do matrimônio, da transmissão da vida e da educação dos filhos. Fazem-se inúmeras citações da Gaudium et spes do Vaticano II, da Humanae vitae de Paulo VI, da Familiaris consortio de João Paulo II. 

O olhar é amplo e inclui também as «situações imperfeitas». Com efeito, lemos: «“O discernimento da presença das semina Verbi nas outras culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à realidade matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimônio natural, há elementos positivos também nas formas matrimoniais doutras tradições religiosas”, embora não faltem também as sombras» (AL 77). A reflexão inclui ainda as «famílias feridas», a propósito das quais o Papa afirma - citando a Relatio finalis do Sínodo de 2015 —«é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza adoutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações,e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição» (AL 79).

Capítulo quarto: “O amor no matrimónio”

O quarto capítulo trata do amor no matrimônio e ilustra-o a partir do “hino ao amor” de São Paulo de 1 Cor 13, 4-7. O capítulo é uma verdadeira e autêntica exegese cuidadosa, precisa, inspirada e poética do texto paulino. Poderemos dizer que se trata de uma coleção de fragmentos de um discurso amoroso que cuida de descrever o amor humano em termos absolutamente concretos. Surpreende-nos a capacidade de introspeção psicológica evidenciada por esta exegese. O aprofundamento psicológico chega ao mundo das emoções dos cônjuges - positivas e negativas - e à dimensão erótica do amor.Este é um contributo extremamente rico e precioso para a vida cristã dos cônjuges, que não tinha até agora paralelo em anteriores documentos papais.

À sua maneira, este capítulo constitui um pequeno tratado no conjunto de um desenvolvimento mais amplo, plenamente consciente do carácter quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos: «não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica “um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus”» (AL 122). Mas, por outro lado, o Papa insiste de modo enérgico e firme no facto de que «na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo» (AL 123) precisamente no íntimo daquela «combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres» (Al 126) que é de facto o matrimônio.

O capítulo conclui-se com uma reflexão muito importante acerca da «transformação do amor» uma vez que «o alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha» (AL 163). A aparência física transforma-se e a atração amorosa não desaparece, mas muda: com o tempo, o desejo sexual pode transformar-se em desejo de intimidade e «cumplicidade». «Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade» (AL 163).

Capítulo quinto: “O amor que se torna fecundo”

O quinto capítulo centra-se por completo na fecundidade e no carácter gerador do amor. Fala-se de uma maneira espiritualmente e psicologicamente profunda do acolher uma nova vida, da espera própria da gravidez, do amor de mãe e de pai. Mas também da fecundidade alargada, da adoção, do acolhimento do contributo das famílias para a promoção de uma “cultura do encontro”, da vida na família em sentido amplo, com a presença de tios, primos, parentes dos parentes, amigos. A Amoris laetitia não toma em consideração a família «mononuclear», mas está bem consciente da família como rede de relações alargadas. A própria mística do sacramento do matrimônio tem um profundo carácter social (cf. AL 186). E no âmbito desta dimensão social, o Papa sublinha em particular tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos, como a relação entre irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os outros.

Capítulo sexto: “Algumas perspetivas pastorais”

No sexto capítulo, o Papa aborda algumas vias pastorais que orientam para a edificação de famílias sólidas e fecundas de acordo com o plano de Deus. Nesta parte, a Exortação recorre às Relações conclusivas dos dois Sínodos e às catequeses do Papa Francisco e de João Paulo II. Volta-se a sublinhar que as famílias são sujeito e não apenas objeto de evangelização. O Papa observa que «os ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias» (AL 202). Se, por um lado, é necessário melhorar a formação psicoafetiva dos seminaristas e envolver mais a família na formação para o ministério (cf. AL 203), por outro «pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados» (AL 202).

Em seguida, o Papa desenvolve o tema da orientação dos noivos no caminho de preparação para o matrimônio, do acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida matrimonial (incluindo o tema da paternidade responsável), mas também em algumas situações complexas e, em particular, nas crises, sabendo que «cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração» (AL 232). São analisadas algumas causas de crise, entre elas uma maturação afetiva retardada (cf. AL 239).

Além disso, fala-se também do acompanhamento das pessoas abandonadas, separadas ou divorciadas e sublinha-se a importância da recente reforma dos procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade matrimonial. Coloca-se em relevo o sofrimento dos filhos nas situações de conflito e conclui-se: «O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo» (AL 246). Referem-se de seguida as situações dos matrimônios mistos e daqueles com disparidade de culto, e a situação das famílias que têm dentro de si pessoas com tendência homossexual, insistindo no respeito para com elas e na recusa de qualquer discriminação injusta e de todas das formas de agressão e violência. A parte final do capítulo, «quando a morte crava o seu aguilhão», é de grande valor pastoral, tocando o tema da perda das pessoas queridas e da viuvez.

Capítulo sétimo: “Reforçar a educação dos filhos”

O sétimo capítulo é totalmente dedicado à educação dos filhos: a sua formação ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a educação sexual, a transmissão da fé e, mais em geral, a vida familiar como contexto educativo. É interessante a sabedoria prática que transparece em cada parágrafo e sobretudo a atenção à gradualidade e aos pequenos passos que «possam ser compreendidos, aceites e apreciados» (AL 271).

Há um parágrafo particularmente significativo e de um valor pedagógico fundamental em que Francisco afirma com clareza que «a obsessão (...) não é educativa; e também não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se (...). Se um progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia» (AL 261).

A secção dedicada à educação sexual é notável, e intitula-se muito expressivamente: «Sim à educação sexual». Sustenta-se a sua necessidade e formula-se a interrogação de saber «se as nossas instituições educativas assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade». A educação sexual deve ser realizada«no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua» (AL 280). É feita uma advertência em relação à expressão «sexo seguro», pois transmite«uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento» (AL 283).

Capítulo oitavo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”

O capítulo oitavo representa um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral diante de situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor propõe. O Papa usa aqui três verbos muito importantes: «acompanhar, discernir e integrar», os quais são fundamentais para responder a situações de fragilidade, complexas ou irregulares. Em seguida, apresenta a necessária gradualidade na pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral e, por fim, aquela que é por ele definida como a «lógica da misericórdia pastoral».

O oitavo capítulo é muito delicado. Na sua leitura deve recordar-se que «muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha» (AL 291). O Pontífice assume aqui aquilo que foi fruto da reflexão do Sínodo acerca de temáticas controversas. Reforça-se o que é o matrimônio cristão e acrescenta-se que «algumas formas de união contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e analógica». Por conseguinte, «a Igreja não deixa de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimônio» (AL 292).

No que respeita ao «discernimento» acerca das situações «irregulares», o Papa observa: «temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição» (AL 296). E continua: «Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto duma misericórdia “imerecida, incondicional e gratuita”»(AL 297). E ainda: «Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral» (AL 298).

Nesta linha, acolhendo as observações de muitos Padres sinodais , o Papa afirma que «os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo». «A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais (…).Não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja (…). Esta integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos» (AL 299).

Mais em geral, o Papa profere uma afirmação extremamente importante para que se compreenda a orientação e o sentido da Exortação: «Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas (…) é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos”, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos» (AL 300). O Papa desenvolve em profundidade as exigências e características do caminho de acompanhamento e discernimento em diálogo profundo entre fiéis e pastores. A este propósito, faz apelo à reflexão da Igreja «sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes» no que respeita à imputabilidade das ações e, apoiando-se em S. Tomás de Aquino, detém-se na relação entre «as normas e o discernimento», afirmando: «É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma» (AL 304).

Na última secção do capítulo, «A lógica da misericórdia pastoral», o Papa Francisco, para evitar equívocos, reafirma com vigor: «A compreensão pelas situações excecionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimônio se assim evitar as ruturas» (AL 307). Mas o sentido abrangente do capítulo e do espírito que o Papa Francisco pretende imprimir à pastoral da Igreja encontra um resumo adequado nas palavras finais: «Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja» (AL 312). Acerca da «lógica da misericórdia pastoral», o Papa Francisco afirma com força: «Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho» (AL 311).

Capítulo nono: “Espiritualidade conjugal e familiar”

O nono capítulo é dedicado à espiritualidade conjugal e familiar, «feita de milhares de gestos reais e concretos» (AL 315). Diz-se com clareza que «aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística» (AL 316). Tudo, «os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição» (AL 317). Fala-se de seguida da oração à luz da Páscoa, da espiritualidade do amor exclusivo e livre diante do desafio e do desejo de envelhecer e gastar-se juntos, refletindo a fidelidade de Deus (cf. AL 319). E, por fim, a espiritualidade «da solicitude, da consolação e do estímulo». «Toda a vida da família é um “pastoreio” misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro» (AL 322), escreve o Papa. «É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele» (AL 323).

No parágrafo conclusivo,o Papa afirma: «Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…). Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida» (AL 325).

A Exortação apostólica conclui-se com uma Oração à Sagrada Família (AL 325).

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Como já se pode depreender a partir de um rápido exame dos seus conteúdos, a Exortação apostólica Amoris laetitia pretende reafirmar com força não o «ideal» da família, mas a sua realidade rica e complexa. Há nas suas páginas um olhar aberto, profundamente positivo, que se nutre não de abstrações ou projeções ideais, mas de uma atenção pastoral à realidade. O documento é uma leitura densa de motivos espirituais e de sabedoria prática útil a cada casal ou a pessoas que desejam construir uma família. Nota-se sobretudo que foi fruto de uma experiência concreta com pessoas que sabem a partir da experiência o que é a família e o viver juntos durante muitos anos. A Exortação fala de fato a linguagem da experiência e da esperança.


quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Video do Papa - Pequenos agricultores



Que os pequenos agricultores recebam a justa compensação pelo seu precioso trabalho.

Papa Francisco - Abril 2016